24 de dez. de 2012

OVOS

    De onde vem a palavra ‘ordem’? Da desordem? Uma dona de casa administrando-a como se ela fosse um quebra-cabeça, o pai punindo as peças.
    Ninguém: ‘Meu nome é ninguém’ vem com uma voz ao telefone que facilmente pode ser identificada como a de uma criança. Aqui, uma criança de onze anos que está tão psicologicamente exausta de algo que suporta com dificuldade. Prematuramente; hoje é noite de natal, e ela tem algo grandioso e sagaz para oferecer no show de talentos em que só ela se apresentará.
    Seu nome poderia ser qualquer um, de origem americana como muitos outros. Não importa se é uma garotinha branca ou negra, as mães não checam a origem dos nomes que oferecem aos filhos.
    Na verdade, dias atrás, ninguém falaria seu nome na sala de aula, ou falava bem alto; o máximo que os ouvidos podiam. Porque ela é gorda. Podíamos dizer que ela é feliz, mas ela ainda sim de fato, é feliz, é feliz porque é gorda, mesmo com o show de talentos que irá oferecer na ceia de natal.
    Hoje na aula, ela disse para si mesmo ‘ninguém’ igual a uma garota envergonhada. Uma garota envergonhada é o pequeno planeta tireoide que ela traz em seu esôfago. Um brinquedo pequeno que ela não pode quebrar em uma parede, mas ‘ninguém’ tinha planos, tinha planos. Vamos esperar e ver.
    Eu:
    Eu estou no primeiro andar. Minha casa tem dois deles. De andares. Desde que voltei do hospital de novo, eu não desço as escadas. Eu não posso escalar o teto. Eu só consigo levantar da cama e andar por esse quarto fedido.
    Mamãe sempre vem limpá-lo, para refrescá-lo, para abrir a janela mesmo que ela saiba o quanto eu sou uma pessoa escurecida. O quanto eu gostaria que aquela janela pudesse ser inativada, fechada, cimentada. Mas mamãe continua vindo, mas o quarto nunca consegue ficar totalmente limpo porque eu trago ovos para cá. Eu trago ovos para cima já que eu não consigo trazer tijolos para fechar a janela.
    Desde que voltei, papai tem me dado banho, me barbeado, mamãe me veste e minha irmã faz a maquiagem. Batom, lápis e pequenas maçãs desenhadas logo abaixo dos olhos, a maçã dos olhos, e ela me deu uma peruca longa a caracolada de presente de natal, mas deu antes da ceia, claro – essa não seria a ordem natural das coisas – Mas devemos nos lembrar que minha irmã está sempre tão ocupada cuidando da aparência, mais especificadamente dos seios. Mas devemos nos lembrar que mamãe pensa que acha que um homem sempre deve se vestir bem, sozinho...Papai me lavou e me barbeou. Mas devemos lembrar que eu jamais voltarei de um hospital por estar em pleno surto por me odiar tanto, por querer tanto explodir, por meu pai ter cortado meu cabelo por minha vida toda – Nesse exato momento, a cor dos meus cabelos é amarelo-gema.
    Papai: Ele foi preso de novo. Mas logo foi liberado para a ceia de natal, por sorte. Foi o que ele recebeu por construir sua última favela para algumas famílias perdedoras que sabem exatamente qual ajuda receber ou aceitar, papai usou recursos próprios de novo. Nossos recursos. Agora aqui esta ele: um homem querendo redenção. Ele já foi preso antes por construções péssimas. Ele conhecia as pessoas que estava ajudando? Não sabemos. Tudo o que sei é que vovó não deveria ter atravessado o oceano, de Portugal até este país mendigo, por meu pai ter nascido em um longínquo deserto sofrendo o que devia, tendo cicatrizes que nem posso imaginar o quanto ele está se sentindo bem nessa saga de redenção – pouco, muito cego para saber a importância de ter espancado minha cabeça até que eu enlouquecesse.
    Papai sacou uma caneta em um papel para aceitar a melhor televisão que o mundo fosse capaz de produzir. Assim, ninguém nessa imensa casa podia desenvolver qualquer pensamento, nenhuma filosofia podia ser contestada. Papai falhou.
    Papai não sabe quem é Catherine Ibarguen*, mesmo com sua TV gigante. Ele podia facilmente ver que eu tinha tudo para ser a próxima Catherine Ibarquen, mas isso não podia acontecer por ser algo extra terrestre. Ter um talento como aquele em casa? Jamais! Então, mamãe colocou as cadeiras da cozinha bem no meio do corredor, o fez com as cadeiras da sala de jantar também, papai construiu um arco que separa a sala de estar com a sala de jantar, mamãe também fez o mesmo com as cadeiras atrapalhando o máximo o corredor , onde eu não conseguiria praticar para ser a próxima Catherine Ibarguen. Mas eu treinava mesmo assim. Ele até mesmo me proibiu de usar o corredor do quintal com alegações fálicas. Uma delas era dizer que eu iria afundar o piso. O próximo tópico, o mais doente deles é que ele apenas esperou que eu me tornasse uma pessoa de vinte e sete anos que simplesmente não podia não podia bater Catherine Ibarguen. Ele esperou da forma mais obscura que podia uma coruja. Agora estou aqui nesse quarto, e minhas pernas não são fortes o bastante e somente, o suficiente para descer as escadas para a ceia de natal.
   
    A dona de casa é pior que ‘ninguém’. ‘Ninguém’ seria um nome bom demais para ela. O peru está no forno. O peru não poderia ser mais falso ou pior do que o mais tradicional poderia, contendo um dispositivo de plástico que avisa quando o peru está pronto. Mas o peru e a dona de casa são de plástico e você pode enchê-lo como um balão até morrer, porque deus sequer existe. Essa festa falsa é uma festa católica e você é budista, não é mamãe? Para quem está sendo feito o peru? Para ‘ninguém’ que nem mesmo conhece as abstrações das religiões, e só quer presentes e um peru para comer assistindo aos especiais da TV, como todas as outras crianças neste país onde as pessoas parecem e agem como perus com pernas, andando sem cabeça.
    O que será que ‘ninguém’ vai fazer na ceia de natal? Essa questão está deixando as pessoas um tanto intrigadas. Todas aquelas cabeças que ‘ninguém’ só pode enxergar olhando para cima. Não por ela ter só onze anos, mas porque a porra da tireoide apenas garante que ela vai crescer menos do que as outras. ‘Ei, o que ninguém vai fazer na ceia’?
    Dançar? Ela costumava gostar de balé. Cantar? Seria uma grata surpresa. Nadar? Não, ela escapou das aulas de natação e mamãe, a dona de casa é tão agressiva com ela e diz coisas horríveis quando ela não lava os pratos como ela quer, grita ainda mais alto quando ela deixa lápis esparramados no chão. Ameaça de agressão física quando encontra comida escondido em seu quarto, pois ela deve ter uma rígida dieta. ‘Se não seguir, irá morrer cedo’ e também ‘Você será com toda certeza a mais feia e a mais gorda garota’. Eu sinto revolta por ela, sinto-me mal por ela.
    Então, ‘ninguém’ começou a revanche. Ela começou a ser uma garota furiosa e começou a gritar de volta. Mas mamãe grita mais alto e nada funciona quando minha irmã vem nos visitar com seus seios novos. ‘Ninguém’ tem uma surpresa para hoje á noite, mas ela antecipa a surpresa e começa entrelaçar náilons no lustre.
    A tarde estava começando a cair. Todos os presentes pensaram que eu podia andar perfeitamente, mama achou, papai achou, ‘ninguém’ achou, mas eu tinha certeza e podia ficar com ela só para mim.     A primeira tia que chegou foi Clarice. Ela vinha tão feliz pelo corredor do quintal com seus braços gordos e flácidos ao me ver pela janela e disse ‘Oi, meu amor!’ e eu ‘tah!’ atirei um ovo no meio de seu rosto. Após isso, me retirei da janela.
   
    Antes de pensar na inquisição como punição, a dona de casa foi ajudar a tia Clarice com mil e meias desculpas, a secava. Ninguém só acompanhou a situação olhando para o lustre como um gavião, o quanto eles são três e grandes. Bem... O cheiro se dissiparia facilmente, a não ser que não trocasse de roupa. Foi o que ela fez, decidiu ir para casa trocar-se. Quando ela voltou e apareceu no corredor com cautela, ‘tah!’ eu a surpreendi com outro ovo.
    Tia Gersoni, a mais bêbada de todas, a mais feliz das tias, entrou no campo tão feliz dizendo ‘O que você ainda está fazendo aí encima?’ quando me viu pela janela, ‘tah!’ acertei um ovo em sua boca quando ela tentava terminar a frase. Tio Luís já estava no corredor, não podia voltar e ‘tah!’ arremessei um ovo em sua cara de bancário.
    Não teve jeito. Não havia solução para aquela fedida situação. Tia Clarice voltara para o carro com seu marido, primos. Em um carro atrás, outro cheio da nossa prole, tios, primos, mas tia Clarice guardou segredo do ocorrido e planejava voltar para a ceia.
    Clarice estacionando o carro não poderia nem mesmo imaginar que aquela situação proteinada, aconteceria de novo. Voltou com dois dos meus primos favoritos. Clarice entrou no corredor com um ponto de interrogação na face ao incliná-la ‘amor, não faça isso de novo’, eu a deixei dizer apenas meu nome. Nenhum deles escapara. ‘Tah!, Tah!, Tah!, Tah!’, Acertei todos eles sem vacilar.
    ‘Ninguém’ dessa vez não estava úmida entre as pernas de tanto rir, porque sabia que o melhor da festa estaria por vir. Enquanto mamãe, a dona de casa tentava ajudar o batalhão de porcalhões, ‘ninguém’ secretamente escalou a mesa, já seca com tantos frutos secos e amarrou mais alguns pedaços de náilon entre os lustres.
    Os seios chegaram na frente quando minha irmã chegou. Viu me pela janela e fez cara de desgosto e ‘tah!’ acertei um ovo bem no meio de seus seios esculpidos. Seu namorado novo, atrás dela tentou agachar, mas sem sucesso, ‘tah!’ acertei em sua cabeça quadrada.
    Muito bem, era noite e a festa deveria começar. Um incrível cheiro vomitável de ovo impregnou na família e nos convidados. Um cheiro que era limpo e limpo novamente, mas teimava em não dissipar-se. Todos os porcos convidados cheiravam o mesmo, e permaneceriam daquela forma até a meia noite. Não havia tempo para que tentassem um banho ou troca de roupa. Novos ovos viriam de minhas implacáveis mãos.
    Uma dúvida coletiva: Eu desceria as escadas para a ceia? Ou deveria ficar no quarto trancado com minha loucura cor de gema? Pois bem, vesti uma calça preta, uma blusa que podia ser um cardigã, e ao contrário da minha cabeça pintada de amarelo gema, coloquei uma longa peruca preta para disfarçar, também coloquei óculos de sol. Quando aquela figura desceu degrau por degrau estava um silencio emudecido. Um susto até.
    Mamãe, a dona de casa começou gritar ‘Nós deveríamos era te encher de ovos! Ovos! Ovos!’, mas um dos convidados a impediu, a acalmou, afinal eu era uma pessoa doente, eu era também muito sensível no momento. Mamãe queria me matar, eu sei. Gentilmente, tomei uma cadeira e algumas uvas para ver televisão. Todos me olhavam.
    Na cozinha, mamãe e duas tias, ambas gordas e retentoras de líquidos, estavam discutindo sobre o peru no forno; de que marca é? É grande? É muito pequeno? , mesmo assim todas trouxeram seus pratos de casa com comida complementar que deveria em algum embrulho mostrar o melhor mercado, a melhor padaria etc. Aquela comida toda duraria para sempre e isso não era ruim. Todas aquelas pessoas fedidas comeriam aquela comida para sempre.
    Dei a minha irmã um motivo melhor para ter seus seios notados. Ela tinha a pior expressão facial do universo e o namorado era o único ser vivo que ela conversava, e eles ficavam afastados dos demais em um canto da casa. Ninguém gosta deles. Os implantes de seios estavam lá dentro da pele dela dizendo ‘pffff... Como te odiamos’
    Meu primo gosta de mim ‘Jamais te comeria com essa peruca’ ele pensa; Fora o fato de que eu detesto ser penetrado no ceia de natal, mas ok, é um bom primo. Minha prima também gosta de mim, praticávamos esportes na infância juntos ás vezes e ela foi a única além de ‘ninguém’ que achou o ataque de ovos engraçado. Os homens ficavam bebendo cerveja, pensando em um jeito de me colocarem em uma clínica para sempre.
    Na cozinha, quando a discussão sobre o peru acabou, quando o próprio peru terminou de assar, a maioria das pessoas foi consumida pela mais variada comilança suficiente por pessoa, o equivalente a um quarto do peru, para se evidenciar que o mesmo estava seco.
    ‘Cada um em seu lugar, por favor’ disse a mamãe, a dona de casa. Nós lá, sentados e minha irmã disse com amargura:
    – O número da Caroline, mamãe.
    ‘Oh Caroline’! Disse os tios, ‘Oh Caroline’ disse os primos, ‘Oh Caroline’ eu disse com minhas últimas forças. Caroline, sim, isso é o mesmo que ‘ninguém’ - Ela rapidamente subiu na mesa, ao som do ‘Ei, ei!’ do papai, com o ‘Ei, ei !’ da mamãe, Caroline rapidamente enfiou seu pescoço entre os náilons estrategicamente e saltou com os joelhos flexionados, enforcando-se. Ela o fez depois de mamãe, a dona de casa dizer ‘ Ei’ e antes de o papai dizer ‘A mesa é de vidro...’
*Catherine Ibarguen: Atleta Colombiana, recordista sul Americana do salto triplo.